“A capacidade mental do negro é medida a priori, a do branco a posteriori”
Se o subúrbio é o grande personagem do romance, a hierarquia das cores é um coadjuvante à altura. Entre funcionários de baixos salários, pensionistas e desempregados, há diferenças do como se sobrevive. Entre o mais pobre e aquele remediado branco e o negro ou mulato, mais ainda, faz-se um fosso. Já a cultura, o conhecimento e mesmo a arte, não significam objetivamente algum tipo de ascensão, mas pelo menos garantem algum prestígio entre os pares.
A cor aliada nesse caso à condição feminina são os dois eixos mais perversos que Lima Barreto critica.
A maldição de Cam (ou Cão) (Gênesis 9:20-27) é uma falácia baseada em um argumento bíblico usado para legitimar a escravidão dos negros, que supostamente seriam os descendentes de Cam e, portanto, herdeiros de sua maldição.
Na história bíblica, Cam, filho mais novo de Noé, ao flagrar seu pai embriagado e nu, chamou seus irmãos mais velhos para ver a situação do patriarca. Ao acordar, Noé amaldiçoou não apenas seu caçula a ser servo de seus irmãos, como a todos seus descentes com a mesma escravidão.
As interpretações do texto bíblico variam, mas uma que tomou muita força no mundo todo foi a de que Cam seria o patriarca dos povos de África e, portanto, esses povos eram escravos por determinação de uma das figuras mais importantes do Antigo Testamento.
Fundamentados por essa interpretação lastimável e criminosa, muitos homens da fé, da ciência, das letras, da política, etc, levaram a diante a crença de que uma etnia estaria condenada a ser inferior a outra.
Esse tipo de pensamento, que atribui valores diametralmente opostos a etnias diferentes também embasa o pensamento do determinismo racial e fundamenta pesamentos e ações eugenistas. Diversos lugares do mundo passaram por um processo doloroso e terrível de segregação racial, como, por exemplo, os Estados Unidos. No Brasil, no entanto, o procedimento racista manifestou-se também pela propagação da ideia de um suposto progresso que o branqueamento das etnias negras teria. Esse branqueamento, de acordo com as hipóteses da época, aconteceria em três gerações.
O processo de branqueamento e a ideologia por trás dele são ilustrados no quadro a redenção de Cam: a avó negra que ergue as mãos aos céus, em pose de dar graças, ou de agradecer; a filha parda, que está sentada ao lado de seu marido, e a neta branca. O título do quadro corrobora ainda mais para a mensagem de salvação ser passada: através do branqueamento Cam e seus descentes seriam finalmente redimidos.
Por mais absurda e repulsiva que seja essa ideia para nós hoje, esse tipo de pensamento era natural e aceito na época em que se passa Clara dos Anjos. Esse livro não fala apenas da posição da mulher na sociedade, mas, sobretudo, da mulher negra em uma sociedade que não apenas aceita, mas reproduz o racismo de inúmeras maneiras.
Em uma interpretação que Olavo Bilac, o príncipe dos poetas, o baluarte do Parnasianismo, fez desse quadro, temos a comprovação da forma com que esses absurdos estavam entranhados e naturalizados na sociedade do final do XIX e começo do XX:
"Vede a aurora-criança, como sorri e fulgura, no colo da mulata - aurora filha do dilúvio, neta da noite. Cam está redimido! Está gorada a praga de Noé!“ (Olavo Bilac, assinando como Fantasio)
"Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.
Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.
Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa." (grifos nossos)