“Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.
Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi?”
"reclusa, sem convivência, sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida e notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua pequenina alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas. (grifos nossos)
Os trechos de lei presentes nessa página eram os que estavam em vigor na época em que Clara dos Anjos foi escrito e publicado. Alguns desses artigos são, inclusive mencionados ao longo da narrativa.
Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.
Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta. Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas. [...]
Art. 222. Ter copula carnal por meio de violencia, ou ameaças, com qualquer mulher honesta.
Penas - de prisão por tres a doze annos, e de dotar a offendida. Se a violentada fôr prostituta. Penas - de prisão por um mez a dous annos.
Art. 223. Quando houver simples offensa pessoal para fim libidinoso, causando dôr, ou algum mal corporeo a alguma mulher, sem que se verifique a copula carnal.
Penas - de prisão por um a seis mezes, e de multa correspondente á metade do tempo, além das em que incorrer o réo pela offensa.
Art. 224. Seduzir mulher honesta, menor dezasete annos, e ter com ella copula carnal.
Penas - de desterro para fóra da comarca, em que residir a seduzida, por um a tres annos, e de dotar a esta.
Art. 225. Não haverão as penas dos tres artigos antecedentes os réos, que casarem com as offendidas.
Art. 218. É também anulável o casamento, se houve por parte de um dos nubentes, ao consentir, erro essência quanto à pessoa do outro.
Art. 219. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I. O que diz respeito à identidade do outro cônjuge, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal, que o seu conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.
II. A ignorância de crime inafiançável, anterior ao casamento e definitivamente julgado por sentença condenatória.
III. A ignorância, anterior ao casamentro, de defeito písico irremediável ou de molestia grave e transmissível, por contágio ou herança, capaz de por em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência.
IV. O defloramento da mulher, ignorado pelo marido.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htmArt. 1.548. A mulher agravada em sua honra tem direito a exigir do ofensor, se este não puder ou não quiser reparar o mal pelo casamento, um dote correspondente à condição e estado da ofendida: (Vide Decreto do Poder Legislativo nº 3.725, de 1919).
I. Se, virgem e menor, for deflorada.
II. Se, mulher honesta, for violentada, ou aterrada por ameaças.
III. Se for seduzida com promessas de casamento.
IV. Se for raptada.
Art. 1.548 Diga-se: «A mulher aggravada em sua honra tem direito a exigir... um dote correspondente á sua propria condição e estado». (Decreto 3.725/19)
“Se ele [Cassi Jones] agredisse o carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até à última extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um contumaz e cínico sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de juízes e delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as suas vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de instrução.” (grifos nossos)
Os assassinatos de mulheres adúlteras é um tema recorrentemente criticado por Lima Barreto. Há diversas crônicas suas que tratam desse tema e o fato aparece de forma bastante crítica no romance também.
Lima Barreto, apesar dos machismos da época, afinal ele não deixa de ser um homem do seu tempo, critica o fim trágico de Clara e de tantas outras mulheres por conta de uma cultura machista que impossibilitava à mulher escolher. Àquelas que como Clara engravidavam, restava somente o casamento como alternativa de redimir o passo em falso. Mas mesmo essa alternativa é colocada como temerosa, como retratado no cap. V, o caso de Mme. Bacamarte, que mesmo se casando, sofria com as bebedeiras e as surras do marido. No fim, não escapou do mesmo destino trágico das mulheres desviadas: a prostituição e as drogas.
Embora essa crítica real, presente aos destinos femininos, Lima Barreto trabalhava com muito mais profundidade os personagens masculinos. Basta perceber que as figuras centrais dos seus romances são todas masculinas, à exceção de Clara. E mesmo nesse romance especificamente, a trama se desenha e se desenrola em volta dela, mas orquestrada e atuada pelos personagens masculinos, majoritariamente. Clara, a heroína, como personalidade e densidade psicológica nem se compara a um Policarpo Quaresma, por exemplo. Ela interessa mais enquanto o que ela representa socialmente, mocinha mulata pobre, do que como sujeito.