A mesma Rio de Janeiro sonhada por Amâncio de Vasconcelos é onde se passa a história de Clara dos Anjos. Porém, o tempo desta narrativa é um pouco depois dos eventos ocorridos em Casa de Pensão (1886), e já se ambienta em uma cidade modernizada, republicana e livre da escravidão, e modificada pelos grandiosos projetos de reurbanização e sanitarização do centro da capital.
Na Rio de Janeiro da Belle Époque, seremos convidados por Lima Barreto a voltar nosso olhar para o subúrbio, para a margem e para a desdita da pobreza.
Muito menos luxuoso e chamativo do que o centro do Rio de Janeiro, o subúrbio é povoado por seres que, entre viver e sobreviver, sofrem preconceito por sua classe social e, principalmente, por sua etnia.
De um lado o grandioso Rio de Janeiro, com seu projeto urbanístico em pleno desenvolvimento. Do outro lado, porém, nas regiões mais afastadas e mais negligenciadas pelo poder público, a vida pulsante e carente do subúrbio. É justamente neste ambiente marginalizado que Lima Barreto situa sua Clara dos Anjos. Com seu narrador descritivo e minucioso, o livro também serve de retrato de uma região que não aparece nas fotografias do início do século XX.
“Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.”
“[...] há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.” (grifos nossos)
A descrição pormenorizada do subúrbio feita pelo narrador de Clara dos Anjos compreende os aspectos geográficos, mas também os sanitários e, com maior atenção a geografia humana.
“Se acontece faltar um dos seus "bichos", a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.
A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.” (Grifos nossos)
Sobre as mulheres, o narrador ainda elabora uma espécie de teoria para o mau humor das mulheres suburbanas (não podemos nos esquecer de que, afinal de contas, o contexto de produção do livro ainda é o início do século XX e, assim, o texto irá carregar marcas do pensamento da época).
“O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora do seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que se possa julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um "belchior“ [bazar] de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.” (grifos nossos)
Paralelamente ao enredo de Clara e Cassi, percebemos a profunda crítica traçada por um narrador que aponta e denuncia o abandono do subúrbio pelo poder público, que condena seus habitantes tanto à pobreza em vida, quanto à pobreza na morte.
“Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro. Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.” (grifos nossos)
“Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.” (grifos nossos)
Sobre toda essa questão do subúrbio em oposição ao centro do Rio de Janeiro, a passagem em que Cassi Jones precisa se deslocar à cidade para cuidar de suas finanças é absolutamente icônica. Nela, o narrador desfia toda a implicância do jovem violeiro com o ambiente mais cosmopolita, não antes de descrever todo o ritual do rapaz para estar à altura do centro.
“Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado e, cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para vir à "cidade". Raramente, vinha ao centro. [...] Não gostava mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse, não se daria a tal ridículo...
[...] Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem de que modelo. [...] O que ele sentia diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de educação e de gosto. O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para estes. [...] Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto.
A sua sensação era que estava numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali, [...] o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu valimento; [...] Como é que ali, naquelas ruas elegantes,[...] ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra coisa.
Na "cidade“ [...] ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia [...] Cassi vexava-se [...] comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, [...] sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.
Saiu e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e Largo do Moura. [...] Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade.” (grifos nossos)