Foco narrativo em 3ª pessoa. Narrador onisciente e parcial
O romance evidencia a maestria com que Lima Barreto criava seus narradores. Em Clara dos Anjos, o narrador age como uma câmera, que ao focalizar determinado personagem, desdobra-o em flashbacks, apresenta-o com densidade, história, caráter. Nos momentos de descrições dos personagens, principalmente se é a primeira, ou uma das primeiras vezes que eles aparecem na trama, é como se fosse um mergulho nele. Há uma suspensão da ação narrativa, uma espécie de congelamento, para que possamos prestar atenção somente naquela figura, carregada de história e de sentidos.
Ao mesmo tempo que esse narrador apresenta o personagem, é capaz de externar o que pensam uns dos outros. Narrativamente, vai compondo uma rede de sentidos, de impressões daqueles que participam da ação, e que são ora corroboradas, ora refutadas por esse narrador. Essa rede de opiniões e impressões, esse mosaico de vozes evita uma certa caracterização didática, exótica de cada uma dessas peças. E dá ao leitor um panorama mais denso da ação, uma vez que sabemos o que cada uma daquelas peças pensa um do outro.
Nessas caracterizações fica evidente certa simpatia desse narrador, e provavelmente até do próprio autor, por este ou aquele caráter. Cassi Jones, por exemplo, é carregado de sentidos negativos e acumulado de vícios. Até os animais da sua predileção, galos de briga, são apresentados com visível má-vontade. Essa predileção do autor por este ou aquele personagem, que é mal vista por certa crítica, revela a paixão que o romancista conferiu à sua obra, escancarando seus ressentimentos e sua generosidade e desejo de lutar pela boa causa, qual fosse. Ainda, há alguns momentos, em que vemos um discurso indireto livre incipiente, quando esse narrador se apaga para que praticamente lêssemos os pensamentos diretos dos personagens. Esse recurso denota absoluto controle estilístico de Lima Barreto ao constituir esse narrador, que acaba sendo o grande maestro dessa história.
A narrativa se desenvolve nas ruas e bairros do subúrbio do Rio de Janeiro, para além dos limites traçados pela linha férrea dos trens da Central. A importância desse espaço é tão grande que ele quase chega a constituir um personagem. Há algumas áreas mais próximas do centro, como o Méier e o Engenho de Dentro, onde mora uma pequena classe média, de funcionários públicos ou pequenos negociantes. Lá estão os cinemas que Clara frequenta. Em outros bairros mais distantes, estão os operários, os funcionários mais subalternos, os mais pobres. Quanto maior a distância da linha férrea, mais rural esse espaço se torna. E mais pobre também.
O capítulo VII dedica-se a esse mapeamento do subúrbio, apresentando-o detalhadamente pela primeira vez na literatura.
Há um único episódio que se passa no centro da cidade, cap. IX, quando Cassi desembarca na central e vai passear em direção ao centro, misturando-se na multidão. Mas ele acaba “assustando-se” com o que vê:
“No centro, o malandro não é ninguém, nem assusta nem seduz. Sua inteligência limitada, sua ignorância, seu comportamento rústico, se evidenciam diante dos rapazes que pilheriavam, liam jornais e falavam assuntos que desconhecia. Sua arrogância habitual desaparece e, intimidado pelos jovens e moças que pediam bebida com desembaraço, sente-se um bárbaro.” (Beatriz Rezende, Em defesa de Clara dos Anjos)
Contextualizando...
Pré-modernismo;
Início do século XX;
Aparecimento, na literatura, do subúrbio;
Elementos de oralidade;
Aproximação com ideais modernistas.
Aspectos formais da obra
Gênero: Romance (novela)
Foco narrativo: narrativa em 3ª pessoa/onisciente
Tempo: início do séc. XX
Espaço: subúrbio do Rio de Janeiro
Estrutura narrativa: não linear
Linguagem: coloquial