“[...] Você não vê que, se ele se quisesse casar, não escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? ” (grifos nossos)
Menina de 17 anos, pura, ingênua, alienada. Só é apresentada ao leitor de fato no cap. III, quando indaga ao pai quem era Cassi Jones. Foi criada com mimos e recatos, recolhida e protegida da vida, na melhor das intenções dos pais, que queriam isentá-la dos malefícios que uma menina negra pudesse sofrer. Entretanto, essa redoma só fez com que ela criasse uma visão muito ingênua e romântica do mundo, a partir principalmente do cancioneiro popular das modinhas, sendo a presa perfeita ao malandro Cassi Jones. A descrição de Clara reforça os malefícios da formação machista, superprotetora, repressiva e limitadora reservada às mulheres na nossa sociedade.
Única filha sobrevivente do casal Joaquim e Engrácia, Clara dos Anjos sempre foi objeto de um cuidado extremo dos pais, sobretudo da mãe que, metaforicamente, a colocou em uma redoma de vidro. A jovem passou seus 17 anos reclusa por falta de opção, uma vez que era proibida de se ausentar de casa sozinha, até mesmo para ir à venda próxima.
Junto com sua mãe, Clara toma conta das obrigações da casa e também ajudava seu pai ao copiar partituras. Fora esses afazeres, ela ainda aprendia costura com Dona Margarida, vizinha que a levava, vez ou outra, ao cinema, ou comprar tecidos e calçados.
Mais uma vez nesse livro, a descendência de um casal é equacionada como uma média dos progenitores. Cassi o era em termos de afeto e criação recebida. Marramaque apareceu como a média das aspirações e comportamentos parentais. Clara apresenta características físicas de ambos genitores. Tanto que, para caracterizá-la, o narrador passa mais tempo dando características dos pais, sobretudo de Joaquim.
“A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.
Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe.
Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.” (grifos nossos)
Todavia, enquanto o corpo de Clara era confinado e cerceado, sua imaginação era povoada pelo imaginário das músicas populares, cujo conteúdo amoroso e piegas, contribuiu para que construísse uma representação de amor romântico nociva para si mesma.
A educação frágil de Clara aparece como um complicador na narrativa, pois ela apreende o mundo através do prisma das músicas e filmes românticos da época. Essa mesma estrutura de personagem alienado de seu contexto aparece em Dom Quixote e em Madame Bovary, ambos personagens homônimos de seus livros. Essa sua idealização do amor e do sofrimento amoroso contribui para que ela fique fascinada pelo decadente Cassi Jones, o que se intensifica pelo fato dessa relação ser proibida para ela. Nota-se em Clara que, assim como no caso de Cassi, a formação familiar mostrada impacta de modo negativo no desenvolvimento do caráter e da personalidade dos filhos.
“Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares. [...] Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares. “ (grifos nossos)
“Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais.”
Quando ocorre a combinação entre a total falta de traquejo social com a idealização romanesca da arte e do amor na cabeça de Clara, ela se vê completamente fascinada e atraída por Cassi Jones, a quem o narrador não poupa adjetivos negativos para mostrar o jovem como uma verdadeira falcatrua em forma de violeiro.
“Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava - pensava ela.”
Amplificando ainda mais a questão da representação do amor romântico, transformado em amor burguês à época, Clara passa a ocupar a posição de heroína romântica, sofredora e idealizadora de um relacionamento que apenas é possível em sua fantasia, uma vez que, para Cassi, a coisa é completamente diferente.
Clara mostra-se, portanto, uma heroína romântica fora de época e fora de espaço social, tendo uma caracterização caricatural (arquetípica) da personagem, que é bela e virginal com sobriedade, ao mesmo tempo em que sua inocência e ingenuidade fazem com que ela conheça o mundo unicamente através do filtro ficcional das letras de modinhas românticas. Além disso, é notável para os leitores de sua história a forma com que a moça constrói e se apoia em uma idealização do amor e do relacionamento que arrebatariam e que quebrariam barreiras sociais e de preconceito étnico. É visível também a forma com que a moça acaba aceitando a naturalização do sofrimento causado pelo amor, chegando até a aceitar sacrifícios pelo amor, e considerar morrer de amor, tal qual Romeu e Julieta.
“De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da serra", onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele, com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras: - Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o Cais do Porto, não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava "queimado", como se diz. Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo - esse Cassi." (grifos nossos)
Toda essa construção falaciosa age no sentido de suscitar em Clara resiliência, força perante as dificuldades e resignação, pois a moça crê piamente que terá um futuro agradável e promissor com Cassi, em sua casa de cerca branca.
O narrador, por sua vez, não poupa tinta para mostrar os perigos dessa forma de pensar de Clara deixando muito claro, em sua tese, de onde vem a fonte da fantasia perigosa da qual a moça bebe com sofreguidão. A criação lacunar de Clara, a ignorância obtusa de sua mãe, a reclusão absoluta em que vivia e o cuidado mórbido que Engrácia tinha com a honra da filha, bem como o imaginário repleto de romances cinematográficos e de músicas de amor, tudo isso juntou-se com a inocência e juventude, construindo praticamente uma bomba relógio.
"Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe. [...]
Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.
As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor.
Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele injustos e grosseiros."(grifos nossos)
Embora o narrador seja absolutamente crítico com a situação que rodeia Clara, ele também se mostra compreensivo a ponto de não culpar a moça por sua ignorância. Ele reconhece o impacto dos contextos de Clara como criadores de todo o perigo que rodeia a moça.
Com todo esse contexto, naturalmente Clara julga Cassi da mesma forma que Lafões o faz: pelas aparências. Assim, a moça vai contribuindo para a oposição que Cassi faz de Marramaque e de D. Margarida. Clara, por sua vez, não tinha noção desses jogos sociais, muito menos de sua posição social ou da seriedade da vida, acreditando com todas suas forças num amor de redenção, no bom e velho “comigo vai ser diferente”.
“Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. [...] Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo [...] A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo; [...] Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas - interrogava ela - quem diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai?” (grifos nossos)
“Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao namorado a atitude de Marramaque [...] Por aí e por outras pequenas circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se julgava também sua cúmplice. [...]num relâmpago, viu bem quanto de fingido e falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de boas intenções e de amor sincero e honesto.”
“Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a ela. Era um obstáculo e... Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam, entretanto, a se explicar de viva voz por que ela havia consentido afinal em conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. [...] Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque "Seu" Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado." (grifos nossos)
Infelizmente para a personagem, a autocrítica só ocorre no final do texto, quando o mal irreparável já havia sido feito. Nesse momento, Clara finalmente tem a clareza de reconhecer os passos que deu até sua queda e consegue refletir sobre questões que já se anunciavam através do narrador:
• Sua posição social;
• Sua condição de jovem ingênua;
• O golpe que sofreu;
• Quem é Cassi;
• O que seu futuro lhe guarda.
“Se ‘ele’ a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse - o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente?” (grifos nossos)
“Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.” (grifos nossos)
Qual poderia ser o futuro para uma moça negra, pobre, ignorante e desonrada? Clara considera a morte pelo suicídio e o aborto. Vale lembrar que nenhuma dessas “soluções” era, de fato, aceita socialmente ou mesmo juridicamente. Essas alternativas surgem na cabeça de Clara pelo puro e absoluto desespero que ela sentia.
“Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora Cassi quem o matara.” (grifos nossos)
“Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.
Estava aí o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas de violão, de cartas, de suspiros - todo um arsenal de simulação amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como ninguém.
Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida?”
Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?... - acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"? Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o remédio? [...] o seu pensamento se encaminhou para o "remédio" que devia "desmanchá-lo", antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de "assassinar" assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso.(grifos nossos)
D. Margarida, novamente, tenta vir ao resgate de Clara. Assumindo as rédeas de uma situação incontrolável, ela vai com a jovem até a casa da família Azevedo, encontrando ali Dona Salustiana que, além de culpabilizar Clara por ter se entregado ao filho, se exime de qualquer culpa. Quando o Sr. Manoel chega em casa, ele cai aos prantos ao ver mais uma moça desgraçada por seu filho, e pede perdão a Clara. Todavia, os pais de Cassi não tomam nenhuma providência ou buscam ajudar Clara, confirmando que a moça está, definitivamente, sozinha e desamparada.
"Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!..." (grifos nossos)
O trecho final do livro sintetiza perfeitamente toda a desdita de Clara que, na realidade, é a desdita de todas as mulheres jovens, negras e desamparadas. A história é de Clara dos Anjos, porém ela é apenas mais uma moça que Cassi Jones induziu à desgraça social e psicológica, em um mundo repleto de Cassi Jones.
"Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.
Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:
- Mamãe! Mamãe!
- Que é minha filha?
- Nós não somos nada nesta vida." (grifos nossos)